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sobre viver ou morrer

  • terça-feira, 29 de abril de 2008
  • Wash.
  • foi o próprio Jeff Buckley que deu indícios, na música "Grace", que já estava preparado pra morte. ele tinha 30 anos e tinha uma iniciante carreira promissora, então nem sei bem se acredito nisso também, mas pro cara dizer coisas como "minha hora está chegando e eu não tenho medo da morte" ou "eu sinto eles afogando meu nome"... cara; alguma coisa ele já sabia. ou já planejava, já que até hoje é um mistério como ele se afogou. o corpo dele encontrado numa margem lamacenta do rio mississippi, uns kilometros à frente, alguns dias depois: pode ter sido acidente. pode não ter. enfim, a morte estava ali presente, quase fisicamente.

    ela te faz pensar. já pensei na morte muitas vezes. quando se é uma criança e se descobre o que é a morte, é bem assustador. primeiro porque naturalmente temos medo do desconhecido. as coisas que vêm à cabeça de uma criança normalmente são confusas, então juntando A+B, o medo dobra. triplica. quadriplica, e o dobro disso. o medo da morte era tão forte em mim que eu não conseguia dormir; certa época fiquei uns 40 dias sem dormir direito pensando nisso, e sinceramente não é lá muito sadio pra uma criança ficar pensando na morte. mas às vezes eu acredito que foi bom descobrir cedo sobre a morte e seus mistérios; isso dá tempo suficiente pra trabalhar a cabeça, e por mais misteriosa que continua sendo o que há depois da morte, você chega à simples conclusão que ela é normal, faz parte da vida. e é inevitável. o pior mesmo é a eterna curiosidade felina que atormenta a todos: qual será o dia que ela vai chegar?...

    aprendi a não me preocupar com isso também. o dia que ela vier é porque é pra ser, é porque tá na hora. tá lá, escrito. tampouco me importa qual será o dia. o importante é não deixar de viver até o dia chegar: viver por viver é menosprezar o que a vida te proporciona.

    eu já vi um homem morrer. na prática, morrer é só deixar de viver, não fosse o sintoma de especismo que te passa desapercebido; eu digo isso porque você já deve ter visto um inseto morrer, uma lesma morrer, uma planta morrer, um rato, até um animal maior como um cachorro ou um cavalo morrendo. mas um homem morrendo.... sei lá, é diferente. mexe com você, instintivamente. é seu semelhante, pode acontecer com você também. poderia ser VOCÊ ali agora, mas foi ele. tudo isso e mais um monte de coisas faz você pensar muito, durante dias, até se cansar e voltar a não se preocupar com isso. por isso a morte faz parte da vida.

    ele trabalhava comigo, na época. eu era um garoto, 17 anos, não tinha visto muita coisa ainda, acho que não tinha visto nem uma mulher pelada ainda na minha frente, então imagina que era um cabaço mesmo, um cabaço pra vida. mas não foi vacilo meu, eu só presenciei, então isso não me traumatizou nem me causou problemas. pra mim, foi só uma experiência. enfim... eu trampava com desenho mecanico numa empresa de pequeno porte, uma metalúrgica, e esse cara era só um encarregado de serviços gerais, um quebra galho geral, pode se dizer. naquele dia eu almocei e fui sentar debaixo de uma varandinha, pra observar o movimento do trânsito e pessoas que circulavam na calçada, enquanto rolava a digestão. esse cara subiu no telhadinho que fazia minha sombra e começou a consertar um vazamento na telha, sem notar com muito cuidado um desse pinos de porcelana condutores de energia, não sei o nome dessa joça, que puxa a eletricidade do poste da rua pra divisora interna da fábrica; ele lá trabalhando no vazamento e eu sentado, observando os carros. de um momento pro outro ouvi aquelas onomatopéias que usam em efeitos sonoros para filmes, aquelas que indicam uma descarga elétrica, tipo "bzzz bzzz bzzz"!! bem forte, e pelo canto dos olhos na nuca vi fagulhas de fogo e um calor intenso nas costas. tudo isso foi cerca de 3 segundos, o que dá tempo pra instintivamente se levantar correndo, dar uns 5 ou 6 passos e olhar pra trás pra entender o que está acontecendo: vi o cara fritando por mais 2 segundos no máximo, e a corrente elétrica foi bloqueada automaticamente, livrando o corpo dele pra cair pesadamente no solo, como um fantoche, como um boneco de pano. o que rolou pra isso acontecer foi surreal: no momento que ele consertava o telhadinho, a estática da energia que passava pelo pino de porcelana foi tão grande, tão forte, que puxou o cabelo dele - de meio corte no pescoço - e foi o cabelo o único condutor da eletricidade à passar coisa de 18 mil watts pelo resto do seu corpo. ele fritou. só não virou um carvão porque a corrente caiu, foi interrompida.

    ele bateu no chão. me lembro dos olhos dele, esbugalhados, abrindo a boca pro último expiro de puro gás carbonico, que saiu em forma de leve fumacinha branca. indicou que por dentro ele cozinhou. um cara que passava na rua na hora correu pra socorre-lo com massagem cardiaca e respiração B-A-B, eu corri pra dentro da portaria, liguei instantaneamente pro resgate. foi o que deu pra fazer, foi o que eu soube fazer e foi o que consegui pensar em fazer naquela hora. mas acredito que aquela fumacinha branca foi o último respiro de vida que o corpo dele deu: quando o resgate chegou ele já estava morto. foi fulminante.

    sinto até que invado um pouco a privacidade e a memória in vita do cara; mas essa imagem faz parte de mim agora. eu me apropriei. na polícia tudo ficou esclarecido e comprovado que foi um acidente de trabalho, creio que a família dele tenha sido indenizada por isso. é estranho que não me lembro do rosto de muita gente dessa época, nem tampouco de muitos afazeres que eu desenvolvia. pior ainda: nem me lembro do nome dele. e nem sei se ele estava preparado pro seu último dia. mas nunca vou esquecer o rosto desse cara, e seus olhos estalados, fixos no nada, em seu último minuto. foi o dia que eu vi a morte.

    1 coffee junkies:

    1. Nessa disse...
    2. Eu não sei lidar com a morte. Nunca soube e até hoje forço a barra e fecho os olhos pra não ter que encará-la de frente.
      Esse texto me deu um nó na garganta tão grande que, sério, quase chorei.

      30 de abril de 2008 às 19:08