dois garotos, um pipa.

  • quarta-feira, 27 de outubro de 2010
  • Wash.
  • domingo daqueles: iluminado, receptivo. o sol no topo de nossas cabeças. o almoço já havia assentado e uma leseira causada pelo conjunto da ocasião (lasanha, cerveja, caipirinha, cerveja) nos impediu de fazer a caminhada de costume até o aeroporto, onde deitavamos sob a cabeceira da pista, esperando, imóveis, os aviões pousarem a menos de 200 metros de altura de nossos corpos. dose de adrenalina necessária prum bando de adolescentes entediados. não naquele domingo, pós-almoço pesado, sol escaldante: sem a mínima possibilidade de longas caminhadas. não haveria o que fazer senão sentar de frente à grade do condomínio e ver as pessoas passarem, ver os carros passarem, ver o tempo passar.

    do outro lado da rua, num vasto canteiro cheio de capim baixo e entulhos, três garotos olhavam prum céu azul apinhado de pipas. pareciam os três amigos de mesma rua, de mesmas molecagens. ali tudo o que desejavam, com uma voracidade juvenil, eram os pipas em pleno combate aéreo. o primeiro que caisse já estaria de bom grado, e eles continuavam mirando, com pescoços curvilíneos, os olhos mentalizando um mantra de desejo pela queda de um deles.

    pois bem, eram três garotos, como eu disse. de todos aqueles pipas no ar, muito provavelmente um, apenas um, cairia. observando aquela situação, um lampejo de idéia brota na mente de cada um, quase sincronizados. ninguém ali era de má-indole; uma leve falta de caráter em cada um, talvez, mas como dizem: "cabeça vazia,..."

    olhamos uns pros outros, sentados do lado de dentro do condomínio: quase conseguiamos ver, com uma incrível expressão de satisfação nas faces uns dos outros, a rusga pendente nessa situação: por um desses pipas, esses garotos iriam até sair no tapa...!

    dito e feito. as linhas repletas de cortante deslizaram-se uma sob a outra, num embate pra sentir quem aguentaria mais, qual encontraria a aresta fraca da rival, qual cederia primeiro. um grande, pesado e bem composto de amarelo, vermelho e azul partiu. a linha boiou e o grande pipa flutuou leve no ar, fazendo movimentos de vai-e-vêm de acordo com as correntes de ar quente do domingo preguiçoso.

    "mandado! mandado!", os três gritavam esfuziantes, esbarrando-se, ziguezagueando quase sem direção. nós já sabiamos a tradição das ruas: o pipa vêm alto ainda, mas o trecho de linha cortada preso nele sempre chega primeiro ao chão. o primeiro que pegar a ponta da linha é o dono. simples assim. a única exceção é quando um marmanjo, já de estatura dobrada aos pivetes, também está na disputa. daí não existe um ganho justo, se é que você me entende... mas não seria o caso. os três garotos mantinham a mesma estatura, com pés descalços igualmente. e nós, do outro lado da grade, não estávamos dispostos à interferir: a disputa seria satisfatória. venceria garoto mais ágil. ou não?

    dois alcançaram a ponta da linha, sincronizados. o terceiro já deu como causa perdida e desencanou, voltando o pescoço perpendicular ao céu pra acompanhar o próximo que provavelmente cairia, tempos depois, deixando assim a propriedade do pipa pra disputa do que fosse mais convincente no argumento. ou mais forte: essa era a nossa deixa.

    através da grade começamos a incitar os dois semi-vencedores: "aee, o da direita pegou primeiro!", "não! não! foi o da esquerda!", "eu vi também, foi o da esquerda!!", "não, com certeza o da direita...", comentários diferentes em defesa de ambos se formaram, óbviamente prevendo uma disputa mais acirrada entre os dois pivetes, e dessa forma proporcionando um belo espetáculo pra quem não tinha coisa melhor pra fazer naquele domingo morto. os garotos foram tomando gosto pelas vibrações e torcidas de ambos os lados e começaram a se estranhar, exatamente como o nosso planejado; cada um com uma mão firme na linha e a outra empurrando o peito do rival: "é meu", "não, você viu que eu toquei primeiro", "nem fudendo, eu que peguei primeiro", "larga logo essa porra", e os empurrões aumentando, as ofensas verbais engrossando, e os urros do outro lado da grade se intensificando.

    inesperadamente um deles - de mesma estatura, porém mais desprovido fisicamente, molecote ainda encorpando - picou uma rasteira magnífica no outro. já até soltara da mão do pipa pra ficar mais direcional. o mais fortinho estatelou no chão e o magrelinho montou em cima aos socos, uma sequencia incrivelmente ágil e vigorosa pra alguém de seu porte, todos os murros direto na cara. o gordinho empacotou no terceiro ou quarto jeb. apagou na hora. e nós do outro lado da grade, boquiabertos, emudecemos por alguns segundos. num impulso olhamos uns pros outros e corremos em direção à portaria, dando a volta do condomínio até o campinho do outro lado da rua.

    o miúdo olhou pra nós com aquela cara de "que foi?", calmamente se levantou por sobre o outro e pegou seu prêmio caído ali ao lado, pela rabiola. o fortinho ainda no chão, começava à dar sinais de consciência novamente. "você tá bem? garoto, você tá legal?", perguntamos preocupados. sacudindo a nuca empoeirada ele se sentou ali mesmo, com um filete de sangue correndo do nariz, e se pôs a chorar copiosamente. ajudamos o garoto a terminar de se levantar e ele correu, meio cambaleante pra dentro do condomínio, berrando pela mãe, enquanto o vencedor já emendava a "pipa-troféu" em seu próprio rolo de linha, como se nada tivesse acontecido.


    ***


    heim?... ahh sim, só isso. fim da estória.


    o quê?... ahh, tem que ter um motivo complacente. uma "moral da estória", certo?! ok, então a moral da estória: nunca incite um garoto a fazer algo errado ou corrompível pro seu próprio divertimento. provavelmente ele o fará sem pestanejar.



    fim da estória.