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sobre o cemitério de pombos

  • segunda-feira, 5 de maio de 2008
  • Wash.
  • esses dias eu tava rolando uma idéia old school com meu caro amigo igualmente old school Daniel Discarga (também atualmente conhecido como Daniel Reggaeiro Safado, mas isso não vem ao caso...) Enfim, falavamos de coisas que a gente passa na vida, coisas normais, coisas doidas; "cara!... a gente viu um cemitério de pombos, poh!"... ele falou. me deu um estalo e lembrei dessa porra toda muito escrota que rolou de cemitério de pombos.

    a gente tava em Barcelona. era fim do rolé da tour de 2005 do Discarga / I Shot Cyrus então depois do último show eu e meu amigo Daniel resolvemos ficar por lá um tempo, tentar a sorte, arrumar um trampo, sei lá, qualquer coisa. tentar dar um giro na vida de novo é sempre bom, se você não sabe ainda vai saber que é bom dar esses giros na vida. sair do eixo. enfim, demos uma fuçada nos contatos que tinhamos por lá e descolamos um canto num squat em Badalona, zona leste da cidade. cara, você passa por squats em vários cantos da europa, e em cada canto tem um estilo de se manter um squat: na Alemanha eles são super limpos e organizados, por exemplo. tudo no lugar, tudo limpo, varrido, despensa de comida organizada, turnos pra lavar louça, colchões "meio limpos"... é tudo catado por aí, então de quaquer forma NUNCA vai ser 100%. mas os alemães deixam tipo no 70%, vai... agora tem outros cantos que é triste. triste. e em alguns cantos da Espanha, é beeeeem triste. pois bem: esse lugar era um Ian Curtis de tristeza, digamos assim...

    potz, era sujo. era muito sem recursos, não rolava um bom esquema de limpar, não rolava recurso pra limpar. não tinha água encanada no banheiro, portanto usar a privada era impraticável e tomar banho nem pensar. eu tenho uma certa paranóia com banhos, tenho que tomar banho e lavar a cabeça todo dia, se possivel mais de uma vez por dia. nesse lugar eu fiquei duas semanas sem poder tomar banho. não tinha como cozinhar também, no máximo fazer um chá quente. no quarto que a gente descolou não tinha iluminação, então tinha que se virar pra ler ou arrumar as malas ou conversar até antes de escurecer, porque depois era só pra dormir mesmo. as janelas e a porta estavam quebradas, então a corrente de vento era contínua. um vento de gelar os ossos, já que o inverno se aproximava, em dezembro. era um sobrado abandonado e a parte ocupada era no segundo andar: o primeiro andar era uma montanha de lixo. pra se ter um idéia, o passatempo da galera do squat era acertar ratos no quintal forrado de lixo com uma arminha de chumbinho.... cara, depois que eventos assim estão guardados no passado, até que é divertido lembrar. mas viver o presente disso é tenso. foi tenso. um dia acordamos com o pessoal do squat marretando uma parede, invadindo o predinho abandonado ao lado. eram várias casas enfileiradas numa rua, todas abandonadas; não se sonha com coisas assim aqui, mas lá rola bastante. com a marreta eles abriram um buraco pequeno na parede e entraram. seguimos por curiosidade, pra ver no que dava...

    lá dentro da casa tudo estava no lugar. na cozinha existiam mesa e cadeiras dispostas em volta, um fogão e uma geladeira, um armário com louça lavada dentro... tudo recoberto com uma camada absurda de pó, mas tudo organizado. peguei um jornal em cima da mesa, com cara de que fora abandonado lá na mesma época dos outros objetos. a data do jornal marcava março ou maio de 1991, se não me engano. não conseguia acreditar que aquilo tudo estava ali abandonado por tanto tempo, sem ninguem requerer ou reivindicar a posse daquilo.
    da cozinha passamos por um corredor que dava num quarto, com tudo no lugar também: armários com cabides e roupas penduradas, uma cama de madeira de lei com um colchão de mola enorme sobre, e com alguns raincoats jogados também. da janela dava pra ver uma sacada podre, que provavelmnete desmoronaria à menor pressão do pé. nem arrisquei. o gran finale foi tentar entrar na sala. estava muito escura, não dava pra enxergar o chão onde se pisava, curiosamente fofo e com uns galhinhos que estalavam ao peso do corpo. um de nós conseguiu, andando sobre esse chão "orgânico", chegar até a janela e nos livrar um faixo grande de luz, pra nossa desagradável surpresa: o chão da sala estava forrado por carcaças de pombos, dezenas delas, talvez mais de cem, por todo o assoalho. estavam ali a tanto tempo que as carcaças estavam ressecadas, mumificadas, só existiam ossos e penas espalhadas pelo chão. só não foi pior por isso: não existiam mais visceras ou orgãos internos, nem tampouco os vermes que devem ter devorado tudo ha muito tempo. acho que eu teria vomitado. a atitude de todos foi enrolar a camiseta na frente do nariz e da boca, afim de evitar qualquer possivel contaminação daquele palco de cadáveres...

    saimos todos de dentro da sala, e da casa. eu e Daniel não voltamos naquele lugar, alias nem os punks que marretaram a parede creio que não tenham voltado, porque realmente foi uma imagem chocante. não teria condições de limpar aquele lugar, então acho que eles desencanaram... agora eu vivo pensando: como aqueles pombos todos entraram ali? e como não conseguiram sair, e morreram todos ali? e o que teria feito aquela casa ser abandonada assim, aparentemente de um dia pro outro, e talvez às pressas? ...sei lá. o caso é que no dia seguinte acordamos de manhã, antes de todos, arrumamos nossas malas e vazamos dali, sem nem nos despedir de ninguém. fomos pra casa do Guille e do Miqui, sem nem avisar direito. ali ficamos por mais uma semana e depois fui pra casa de um amigo no lado norte da cidade e o Daniel foi pra Belgica. decididamente, Barcelona pode ser muito mais interessante do que ir nas baladinhas noturnas de gringos ou passear nos Gaudis da cidade, hehe... ocasionalmente quando penso em coisas bizarras que já vi, me lembro da casa com um cemitério de pombos na sala. não deve ter sido a pior coisa que eu já vi, mas dá pra entrar fácil num Top 5, digamos.
    ai ai... me deu fome. acho que vou procurar algo pra comer agora.

    1 coffee junkies:

    1. Nessa disse...
    2. não que eu inveje a experiência de conhecer um cemitério de pombos, não mesmo. ainda mais num esquema assim, total surpresa mas... pqp, você já aprontou muitão nessa vida, né?
      acho isso fodidamente lindo.

      1 de junho de 2008 às 18:23