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Em Círculos

  • quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
  • Wash.
  • acordei dum pulo, daqueles que se sente quando está quase dormindo, entrando no primeiro estágio do alfa. o cérebro ativa o stand-by e você sente praticamente a alma levitando, logo acima do corpo. um movimento do mouse e o cérebro sai do entorpecimento, a alma sente se desequilibrar da levitação e cai de volta dentro do invólucro de pele e osso. e então você acorda.

    meio desperto meio confuso, meio sem saber exatamente onde estava, só tive o tempo milimétrico de olhar pela janela do ônibus e sentir o estrondo, a pressão do impacto no vidro. um paralama inteiro entrando pelo horizonte do Interestadual, abrindo caminho para o corpo sólido de ferro que se retorcia a cada resvalo, a cada choque com todo vidro, lataria, poltronas, músculos e ossos que encontrava pela frente. meio minuto antes, o motorista do velho maverick decidira que acabaria com aquilo de uma vez por todas, não importasse como seria, não importasse a quem acertaria para que sua missão tivesse sucesso: na verdade mal pensou nisso, na consequência que seu ato teria para terceiros, já que o ódio dominava completamente seu corpo e espirito. fechou os olhos, girou de uma vez o volante do carro para a esquerda e planou por segundos na encosta da estrada. o desnível da ladeira entre as duas pistas o guiou diretamente na direção da janela do imponente Interestadual, ao qual entre outros passageiros, lá estava eu embarcado. ao final do completo e desolador impacto, abri meus olhos, repletos de vermelho em todas as suas nuances e tonalidades. limpei o liquido viscoso que os cobria. escorria não sei de onde, talvez de mim. ainda turvos, enxergaram a ponta do parachoque à menos de um metro da minha cabeça. o passageiro na poltrona à minha frente não teve a mesma sorte.

    acordei. confuso, mais uma vez. ainda me vi dentro do ônibus, intacto. a estrada seguia calma, sem qualquer sinal iminente de acidente. vidros inteiros, fuselagem impermeável, passageiros dormindo. o passageiro da frente lia um livro, tranquilo, sem sequer um arranhão. demorei cerca de meio minuto pra processar a informação de que aquilo tudo teria sido um sonho - péssimo sonho, diga-se de passagem - mas tudo não passava de uma infeliz ilusão. eu continuava lá, e milagrosamente teria escapado do acidente fatal, por um ato inexplicável o automóvel não me alcançou dentro daquele complexo destino do impacto e... não! ainda estava pensando que teria acontecido! foi tudo tão real! senti cada pedaço de vidro que penetrava meus braços e peito... mas não, agora estou acordado, foi só um sonho. só um bem moldado pesadelo.

    de volta pra casa. recuperado pelo mal-estar daquele pesadelo, me sentia bem ao voltar pra casa. ou pelo menos por um segundo: me lembrei de toda a crise por qual estavamos passando, eu e ela. me lembrei das ultimas semanas, de toda a paranóia que ela fantasiava sobre minhas viagens, sobre todas as mulheres inexistentes que ela criava como minhas amantes a cada cidade por qual passava, uma doença intermitente e cansativa que já vinha se extendendo pelos ultimos cinco anos, desde que realmente nos tornamos íntimos, conviventes, marido e esposa. seus escandalos em locais públicos e confusões alarmantes dentro de nossa casa, já conhecidas por toda a vizinhaça, realmente me deixavam maluco. eu me segurava até além de qualquer limite que eu sonhava que um dia poderia ter. é, eu não me sentia tão bem assim ao voltar pra casa. fato.

    com o paletó debruçado num braço, girei a chave no buraco da fechadura com a mão livre que sobrava. uma xícara pesada, cheia de algum líquido escuro, acertou a parede perto da minha cabeça:

    - como foi com aquela vaca? tava confortável lá no puteiro que vocês arrumaram?...
    - do que você está falando de novo, mulher...
    - você sabe do quê!!! aquela vaca com quem você tem trepado ha meses e meses, você sabe de quem estou falando! ...você é muito dissimulado mesmo... (e mais objetos voavam em minha direção. alguns acertavam o alvo.)
    - de onde você tira essa idéias, pelo amor de deus...??? (e eu só pensava em cigarros, mesmo sem nunca ter fumado)
    - você desliga o telefone! você sempre demora mais do que planeja comigo!! e dessa vez nem se deu ao trabalho de tentar sumir com os pertences dela!: deixou um laço de cabelo dela na pia do banheiro! eu conheço meus laços de cabelo e esse DEFINITIVAMENTE NÃO É MEU!!!
    - Julia, por favor!!! tem áreas no interior que não tem alcance de sinal de celular!!! você sabe disso!! onibus nunca chegam na hora, existe uma coisa chamada TRANSITO! e esse laço de cabelo é da minha irmã, ela esqueceu em casa no fim de semana passado, lembra?? aaahh, saco, Julia!!!
    - impressionante como você encontra explicação pra tudo né...
    - claro que tudo tem explicação!!! se nada que você diz faz sentido, todo o resto tem de ter explicação!! nunca pensou nisso?? você tá me deixando maluco, Julia! maluco!!...
    - pois chega!! chega! não aguento mais isso, de todas essas mulheres! sinto esse cheiro em você, você nunca me enganou, nunca vai me enganar. chega!!

    e chegou mesmo. chegou pra mim. mal consegui deixar minha pasta sobre a mesa de centro da sala, peguei as chaves do carro e sai sem nem pensar no que estava fazendo. quando me dei por mim, já estava na estrada de novo. na estrada. de novo. e o cansaço me impedia de pensar porque tudo que queria era tomar um banho, comer algo, ligar a tv. dormir. cada detalhe do meu inferno pessoal, cada motivo sem fundamento da minha culpa voluntária, tudo isso ia acumulando em pensamentos torturantes, sem sentidos. sem solução aparente. eu a abandonaria. ahh, estava certo disso, eu a deixaria! só assim resolveria essa via crucis auto-imposta. mas não, não poderia: conhecendo-a até o ponto que cheguei, sabia que não seria tão facil: ela não era do tipo que sabe perder. ela alegaria algo, agressão, qualquer coisa que conseguisse convencer uma tribuna sobre seu marido ausente, violento e viciado em algo que eu nunca havia experimentado. isso não teria um fim que apaziguasse minha alma perturbada.

    decidi que acabaria com aquilo de uma vez por todas, não importava como seria. não importava quem acertaria para que minha missão tivesse sucesso: na verdade mal pensei nisso, na consequencia que meu ato teria para terceiros, já que o ódio dominava completamente meu corpo e espirito. fechei os olhos, girei de uma vez o volante do maverick para a esquerda. ele planou por segundos na encosta da estrada. o desnível da ladeira entre as duas pistas me guiou diretamente na direção da janela de um Interestadual que cruzava a estrada no sentido contrario. infeliz coincidencia, justamente no mesmo minuto que decidi meu fim.

    atravessei a janela, cravando o carro no interior do onibus, fundindo os dois corpos metalicos em fumaça e gasolina. não sei exatamente como, quem sabe uma última e fatal alucinação, mas por um momento me vi sentado no banco ao lado onde o carro pousou. e eu me olhava ali, na minha frente, apavorado, como num pesadelo caótico espelhado e coberto de sangue. dizem que é a confusão criada um segundo antes de morrer: um deja-vu na forma de um espelho tri-dimensional, irreconhecivel a si proprio, mas inegável ao aceitar seu destino.

    3 coffee junkies:

    1. Marcelo Mayer disse...
    2. pra começar adoro julia. sempre uso este nome em meus contos. genial a parte sobre explicação. é claro que temos explicações pra tudo. se nao fosse por elas, as mulheres viveriam pelo resto da vida sem nos encher. e se querem brigar por tudo, que virem freira.
      este cotidiano se aplica a todos nõs. o segundo da morte pode ser meu segundo de traição, ou meu segundo de me apaizonar, pq vejo a paixão como a morte.
      do caralho wash chinaski

      3 de dezembro de 2009 às 10:58
    3. Nessa disse...
    4. ah, marcelo mayer, não crucifique as 'muléres' assim, nem todas são iguais.

      ah, mr. bebassa, não joga meu coração no chão pra depois pisar em cima. não tô podendo com últimos segundos antes de morrer... =/

      13 de dezembro de 2009 às 04:44
    5. Juliana disse...
    6. Caraca, Wash, vc é bom nisso! :)

      22 de dezembro de 2009 às 12:13