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sobre o amigo iraniano

  • terça-feira, 7 de abril de 2009
  • Wash.
  • fui ver essa animação franco-hebraica chamada Valsa com Bashir, que trata a guerra do Libano de modo não subjetivo, mas talvez em segundo plano. falar a verdade não chega a ser em segundo plano, a guerra em si é de fato o plano principal do filme, claro, mas os personagens acabam chegando ao assunto de uma forma indireta, por meio de sonhos, bloqueios mentais e fatos de importancia pessoal ocorridos no periodo, mas que acabam se afunilando e dichavando um assunto em comum: a insanidade e o horror da guerra. o final em particular é um choque visual, quando a animação (teoricamente um mundo de fantasia) se torna imagem real de documentario, do mundo real e cruel. enfim, é fodástico. recomendo fudidamente.

    anyway, enquanto assistia o filme me lembrei do Ali. grande Ali. logo que cheguei ao Japão, em 1998, fui mandado pra um trampo numa cidade portuaria na provincia de Ibaraki. eu não sabia nada ainda sobre aquele país e não sabia falar japones e não sabia porra nenhuma, um porra de um cabaço perdido no meio de um lugar estranho sem saber de nada. me enfiaram num galpão que processava alimentos, mais especificamente de King Crabs, caranguejos gigantescos que chegavam embalados do Alaska e do Estreito de Behring, prontos para serem processados e comercializados por preços exorbitantes para o consumo diario dos japas. o detalhe era que não tinha NENHUM brasileiro na fabriqueta, só trabalhadores asiáticos, tailandeses, indonesios, filipinos, malaios. a maioria deles clandestinos. meu primeiro pensamento foi "me fodi lindo". mas no segundo dia apareceu um cara branco assim como eu, estatura mediana, com feiçoes caucasianas. "ué! tem brasileiro aqui nessa porra e ninguem me disse nada, cacete!!" foi o que eu pensei, e já fui seco rolando ideia com o cara em portugues, e o cara com uma puta cara de merda olhando pra mim sem entender nada: "where you're came from, man?" e nada de resposta. o cara me responde em japones. !!!. "que diabo... da onde esse cara veio? ele não é japa!" eu perguntei em ingles pros indonesios que eram um pouquinho mais espertos. "ele é iraniano" me respondeu o indonesio. iraniano. sem brincadeira, o cara lembrava um pouco o Mel Gibson! afora o topete, que só depois soube ser esse o corte de cabelo tipico dos jovens e homens iranianos, mas ele parecia o Mel Gibson. uma vez falei isso pra ele e ele ficou todo orgulhoso, me agradecendo. me disse que na verdade ele era diferente até entre os iranianos, que são mais morenos e de sobrancelhas grossas, porque seus pais eram do Uzbequistão, praticamente na Russia. outro fato que indicava ser de origem arabe eram suas calças jeans "baggy"; parece que o embargo americano fez com que os iranianos estacionassem nos anos 80, assim como os carros sexagenarios que circulam por Cuba até hoje. enfim, o cara era iraniano.

    pior que pelo fato de sermos parecidos de alguma forma, a barreira da lingua não impediu que nos tornassemos bons amigos. ele me explicava pela "linguagem universal dos sinais" (...!) sobre o trabalho, a lingua e o modo de vida japones, e tambem o quanto ele odiava estar sozinho naquele lugar onde todo mundo tinha olho rasgado e a polidez sistemática japonesa. achava que só por eu ser fisicamente parecido com ele tinhamos algo em comum, e apesar de eu ser cristão (ou na teoria eu seria) ele poderia confiar em mim. mas com o tempo fui vendo como ele era diferente de mim, culturalmente falando: era um cara esperto, mas era muito machista e homofóbico; achava besteira o meu vegetarianismo mas não comia carne de porco porque Allah lançou no porco animal toda a impureza da humanidade; odiava tudo que lembrava America: "amerikan butá", ele se referia. porco americano, traduzido do japones. de certa forma não podia deixar de concordar, afinal a America fudeu com o país dele. era muito religioso: perdia 20 minutos do horario do almoço pra estender um pano no chão em direção Mecca, e rezar. acho que a segunda entre as 5 vezes ao dia que parava pra fazer isso. mas não usava o turbante islamico nem barba: "fundamentalistas eram uns imbecis", ele dizia. ele não entendia como eu conseguia sobreviver sem religião, que era a roda que movia a vida dele. eu respeitava muito a sua fé, e demonstrando meu interesse ele chegou a me mostrar alguns aspectos bonitos do Islamismo, coisa que aliás toda a religião tem, afora o fanatismo patológico. toda a religião tem a sua beleza, seu lirismo e encantamento. o que fode a religião são seus seguidores, enfim... vai entender! mas enfim, ao ver que não conseguiria me converter, só ficou nas explicações basicas mesmo. nem foi chato, foi instrutivo.

    certa vez falando de guerras (Coreia do Norte havia lançado um missil em direção ao Japão e a porra do missil caiu no mar, os bichos nem sabem fazer uma merda de missil descente) e o Ali me contou que ele tinha servido ao Irã na guerra contra os vizinhos do Iraque. disse que ele era floricultor e foi convocado pro front. mas não entrou em detalhes: disse que não gostava de lembrar das coisas que ele viu na guerra, que era muita desgraça pra lembrança de uma vida só. disse também que os iraquianos de Saddam eram muito cruéis, muito mesmo, inclusive com mulheres e crianças. e só isso. nunca mais nem disse nada. eu ficava curioso em perguntar, mas ele não gostou de lembrar e eu nem toquei mais no assunto, enfim.

    depois de seis meses em sua companhia, acabei tretando com o japa chefe e vazei pra outro canto do Japão. nunca mais vi o Ali, acho que nem me despedi dele. mandei alguns cartões postais, mas ele nem respondeu, talvez nem tenha os recebido. depois ainda passei mais dois anos e meio em terras niponicas, conheci peruanos, chineses, mais filipinos, e muitos, muitos brasileiros, pessoas otimas com estorias de vida interessantissimas. mas sempre lembro do Ali porque foi um cara diferente, com uma aura diferente, um cara complascente apesar de ter sido soldado na guerra do Irã-Iraque e ter visto coisas horriveis, desastres da guerra que modificam a personalidade das pessoas. e apesar de uma vidinha de merda que vivemos aqui, nem sabemos o que é viver na merda de verdade. todos os creditos ao jeito gente fina e "deixa disso, para com isso" brasileiro, sempre dando seus pulos: malandro sempre, mas treteiro jamais. assim que é.

    apesar que existe o trafico, existe a policia e existe a pobreza. é uma guerra, não deixa de ser uma guerra. mas isso é outra estoria: não dá pra comparar treta de vizinho com bagunça dentro da propria casa...

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