sobre datas comemorativas da falha humana

  • sábado, 26 de dezembro de 2009
  • Wash.
  • e lá vem mais um natal. aquele mesmo negócio, todo ano, que a gente já sabe por simbiose: as velhas lendas cristãs infundadas, o velho Santa da coca cola, época de fartura de trampo pra renas, anões e tios de barba branca imensa, avenida paulista intransitável por causa das malditas fachadas enfeitadas dos bancos, 25 de março parecendo um piscinão público... issumemo: já deu pra sacar que não me simpatizo com o natal, tamo entendido?

    creio que fazem uma bela saraivada de anos que o natal não tem um bom significado pra mim. ou nem é pelo significado, afinal é só mais uma dessas datas que não representa mais do que venderem presentes pra pessoas que se odeiam o ano inteiro e encontram ali naquele dia um motivozinho pra se entenderem - mas só naquele dia!... well, hipocrisias à parte, na verdade natal é algo que nem me recordo bem, ter um dia bom, completamente despreocupado ao seu longo. e eu sempre tava com cara de bunda. sem grana, ou cheio de dividas atrasadas, ou a garota estava longe, ou qualquer outra merda que transforma seu dia comum num divertido weekend com Torquemada no seu playground inquisitivo... uma delícia. então me lembrei de uma determinada data, a do ano de 1999, se não me engano, que provavelmente foi a mais cáustica das minhas "festividades natalinas".

    estava em Ibaraki-ken, no Japão, ja fazia bem uns 6 meses carregando caixas de 40 quilos vindas do estreito de Behring, cheias de King Crab. trampinho lazarento aquele. vamos dizer que um belo dia rolou uma presepada com os donos do galpão, e eu me injuriei da merda toda e dei linha no pipa. num prazo de 3 dias, meu "agente-metido-a-yakuza" me arrumou um trampo na extremidade sul do pais, coisa de 800 km de onde eu estava inicialmente, no rabo de Mie-ken. nem me lembro o nome da cidade, era um vilarejo abandonado pelo progresso tecnológico, tipico em qualquer outro canto do japão, menos ali. lembro que era a penultima estação da linha ferroviaria: uma lavanderia industrial de lençóis sujos. dai já dá um pressuposto que eu tinha me metido numa bela duma enrascada, dessas de lavar banheiro de quartel com escova de dente.

    o trabalho consistia basicamente em recolher esses lençois, vindos de motéis e hospitais japoneses (...), condiciona-los num grande tanque de agua fervendo e depois de lavados e centrifugados, se estendia um por um e os enfiava em enormes passadeiras fumegantes. o troço já saia do outro lado da máquina passado e dobrado. enfim, parecia moleza, a não ser por alguns detalhes:

    1- você pega um lençol quente e úmido, o estende com a ponta dos dedos e enfia uma extremidade no rolo da máquina, ela o engole. um lençol: ok. dois lençois: ok. mas já experimentou fazer isso durante 12 horas no dia??... no fim do primeiro dia minha coluna estava latejando, em formato de "S", e a lateral do meu polegar estava em carne viva. em uma semana, eu não tinha mais impressões digitais nas pontas de todos os dedos das mãos.

    2- como já disse, esses lençois vinham de motéis e hospitais japoneses. nos que vinham dos motéis, encontrava-se de tudo no meio: cuecas, calcinhas, jóias, camisinhas (usadas ou não), dildos, chicotes, bolinhas de pompoar, drenos usados pra enemas... certa vez encontrei um belo sapato feminino embolado no lençol, sem o par. dias depois o companheiro de outra maquina encontrou o outro par embolado em outro lençol. não me pergunte como isso aconteceu. sobre os que vinham dos hospitais, chegavam lá todos... hmm... melhor pular essa parte!

    3- me colocaram num alojamento, junto a alguns peruanos, chineses ilegais, e alguns brasileiros fim-de-linha também. o alojamento era uma sequencia de 10 ou 15 quartos de 2mx2m, no andar de cima, e uma enorme sala e cozinha, comunitárias, no andar de baixo. o banheiro logo ao fundo da cozinha, também era comunitário. um só, enorme. aqueles banheiros como dos presidios americanos, 5 ou 6 chuveiros lado a lado, sem box ou divisórias. me sentia em Oz na hora de tomar banho. a cozinha fedia constantemente, em consequência das sopas de cabeça de peixe que os chinas faziam pra combater o frio do rigoroso inverno japonês. duas geladeiras também comunitárias; certo dia fui pegar uma caixa de leite no fundo de uma das geladeiras e ela estava coberta por sangue de peixe. os chinas colocaram cabeças de peixe soltas, sem uma vasilha, no andar da geladeira logo acima da minha caixa de leite...

    4- os companheiros de trabalho, aahhh, essa era a parte terrivel. todos os tipos de "furyos" imaginados, encontrei ali. o chefe da equipe não tinha um braço - nem fiz questão de saber como o perdeu. ele tinha duas filhas beatas com cara das gemeas sinistras do corredor d´O Iluminado. o irmão delas parecia bem normal, até eu observa-lo bebendo uma xícara de café e segurando o pulso firmemente com a outra mão: um tique nervoso o impedia de ter controle sobre a própria mão direita e provavelmente tomaria um banho de café se não o fizesse; uma japonesa completamente maluca comandava outra maquina. esfregava a barriga em circulos com a palma da mão direita constantemente. tinha ataques de histeria se por acaso jogassem a seus pés um chumasso de pelos acumulados de sujeira dos lençois (...!). dentre todos que ali trabalhavam e que até daria pra trocar uma idéia, acreditem, o mais razoavel era um japinha baixinho, se chamava Dana, me lembro. trabalhava o tempo todo, sem parar. eu disse DARIA, se não fosse o caso dele ser SURDO-MUDO.

    essa era a situação que eu me encontrava no dia de natal de 1999, ha exatos 10 anos atrás. nesse dia trabalhei cerca de 13 horas, só parando 40 minutos pra degustar um almoço amargo e completamente desprazeroso, e depois dormir um sono pesado e incomodo na minha caixa de fósforos. deve ter sido o único dia da minha vida que me incomodei por não estar comemorando o maldito espírito de natal. acho que até um mulçumano ia preferir comemorar o natal, nessa situação...

    coisa de 2 dias depois, ao terminar um desses despendiosos dias de trampo semi-escravo, ao chegar no meu quarto pra descansar, levantei uma aba do cobertor que estava com sua ponta encostada no chão e debaixo dele despontou uma aranha enorme em posição ameaçadora, levantando as patas dianteiras indicando um bote venenoso. dei um pulo arremessando chinelo e praguejando os quatro ventos, e o bicho ainda conseguiu escapar de ser esmagado. o problema foi pra dormir aquele dia, sabendo da sua peçonhenta presença rodando meu quarto. no dia seguinte, antes do almoço, um dos brasileiros que constantemente me fornecia comentários inúteis sobre a situação, as pessoas dali e a vida em geral, me soltou a pérola fulminante. chegou em mim sorrateiro, de canto de boca e desconfiado de algo no ar, e me disse: "amigo, ontem me aconteceu algo que tem acontecido com frequencia na últimas semanas: eu vi o diabo..."

    aquilo me bastou pra parar de fazer o que estava me ocupando, me afastar cautelosamente do psicopata e recolher TODAS as minhas coisas, amontoando-as num canto do quarto. comprei um bilhete de trem e fui dormir na casa de um casal de amigos numa cidade ha quilometros dali. no dia seguinte, com a ajuda desse casal, fui até o alojamento com uma van, peguei todas as minhas coisas e mandei enfiar as 2 semanas de salário no rabo de qualquer butyô que passasse por ali naqueles dias. não me lembro de ter feito algo tão certo na minha vida inteira como nesse dia, me dispensando das duas semanas que vivi no inferno shintoísta: depois desse, qualquer outro natal, por mais insípido, odioso e banal por qual eu já tenha passado, foi mamão com açucar.

    esse natal de hoje também não foi as mil maravilhas, mas foi ok. duvido ainda que natal seja relamente uma data prestigiosa. pelo menos as coisas melhoraram pra mim; o ano novo me promete uma caralhada de coisas boas de verdade, a começar pelo reveillon que, me parece, será um dos mais animados dos ultimos anos também. motivos pessoais, claro. o que importa é estar subindo pro topo de forma que quando olhar lá de cima, todo o resto vai ser só soltar o freio de mão que vai descer suave na banguela. ou seja: tomara que todos também tenham um natal melhor que o meu de 1999! saca. e um bom próximo ano também vai bem pra vocês, não precisam agradecer.

    boas entradas, seus putos.


    Em Círculos

  • quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
  • Wash.
  • acordei dum pulo, daqueles que se sente quando está quase dormindo, entrando no primeiro estágio do alfa. o cérebro ativa o stand-by e você sente praticamente a alma levitando, logo acima do corpo. um movimento do mouse e o cérebro sai do entorpecimento, a alma sente se desequilibrar da levitação e cai de volta dentro do invólucro de pele e osso. e então você acorda.

    meio desperto meio confuso, meio sem saber exatamente onde estava, só tive o tempo milimétrico de olhar pela janela do ônibus e sentir o estrondo, a pressão do impacto no vidro. um paralama inteiro entrando pelo horizonte do Interestadual, abrindo caminho para o corpo sólido de ferro que se retorcia a cada resvalo, a cada choque com todo vidro, lataria, poltronas, músculos e ossos que encontrava pela frente. meio minuto antes, o motorista do velho maverick decidira que acabaria com aquilo de uma vez por todas, não importasse como seria, não importasse a quem acertaria para que sua missão tivesse sucesso: na verdade mal pensou nisso, na consequência que seu ato teria para terceiros, já que o ódio dominava completamente seu corpo e espirito. fechou os olhos, girou de uma vez o volante do carro para a esquerda e planou por segundos na encosta da estrada. o desnível da ladeira entre as duas pistas o guiou diretamente na direção da janela do imponente Interestadual, ao qual entre outros passageiros, lá estava eu embarcado. ao final do completo e desolador impacto, abri meus olhos, repletos de vermelho em todas as suas nuances e tonalidades. limpei o liquido viscoso que os cobria. escorria não sei de onde, talvez de mim. ainda turvos, enxergaram a ponta do parachoque à menos de um metro da minha cabeça. o passageiro na poltrona à minha frente não teve a mesma sorte.

    acordei. confuso, mais uma vez. ainda me vi dentro do ônibus, intacto. a estrada seguia calma, sem qualquer sinal iminente de acidente. vidros inteiros, fuselagem impermeável, passageiros dormindo. o passageiro da frente lia um livro, tranquilo, sem sequer um arranhão. demorei cerca de meio minuto pra processar a informação de que aquilo tudo teria sido um sonho - péssimo sonho, diga-se de passagem - mas tudo não passava de uma infeliz ilusão. eu continuava lá, e milagrosamente teria escapado do acidente fatal, por um ato inexplicável o automóvel não me alcançou dentro daquele complexo destino do impacto e... não! ainda estava pensando que teria acontecido! foi tudo tão real! senti cada pedaço de vidro que penetrava meus braços e peito... mas não, agora estou acordado, foi só um sonho. só um bem moldado pesadelo.

    de volta pra casa. recuperado pelo mal-estar daquele pesadelo, me sentia bem ao voltar pra casa. ou pelo menos por um segundo: me lembrei de toda a crise por qual estavamos passando, eu e ela. me lembrei das ultimas semanas, de toda a paranóia que ela fantasiava sobre minhas viagens, sobre todas as mulheres inexistentes que ela criava como minhas amantes a cada cidade por qual passava, uma doença intermitente e cansativa que já vinha se extendendo pelos ultimos cinco anos, desde que realmente nos tornamos íntimos, conviventes, marido e esposa. seus escandalos em locais públicos e confusões alarmantes dentro de nossa casa, já conhecidas por toda a vizinhaça, realmente me deixavam maluco. eu me segurava até além de qualquer limite que eu sonhava que um dia poderia ter. é, eu não me sentia tão bem assim ao voltar pra casa. fato.

    com o paletó debruçado num braço, girei a chave no buraco da fechadura com a mão livre que sobrava. uma xícara pesada, cheia de algum líquido escuro, acertou a parede perto da minha cabeça:

    - como foi com aquela vaca? tava confortável lá no puteiro que vocês arrumaram?...
    - do que você está falando de novo, mulher...
    - você sabe do quê!!! aquela vaca com quem você tem trepado ha meses e meses, você sabe de quem estou falando! ...você é muito dissimulado mesmo... (e mais objetos voavam em minha direção. alguns acertavam o alvo.)
    - de onde você tira essa idéias, pelo amor de deus...??? (e eu só pensava em cigarros, mesmo sem nunca ter fumado)
    - você desliga o telefone! você sempre demora mais do que planeja comigo!! e dessa vez nem se deu ao trabalho de tentar sumir com os pertences dela!: deixou um laço de cabelo dela na pia do banheiro! eu conheço meus laços de cabelo e esse DEFINITIVAMENTE NÃO É MEU!!!
    - Julia, por favor!!! tem áreas no interior que não tem alcance de sinal de celular!!! você sabe disso!! onibus nunca chegam na hora, existe uma coisa chamada TRANSITO! e esse laço de cabelo é da minha irmã, ela esqueceu em casa no fim de semana passado, lembra?? aaahh, saco, Julia!!!
    - impressionante como você encontra explicação pra tudo né...
    - claro que tudo tem explicação!!! se nada que você diz faz sentido, todo o resto tem de ter explicação!! nunca pensou nisso?? você tá me deixando maluco, Julia! maluco!!...
    - pois chega!! chega! não aguento mais isso, de todas essas mulheres! sinto esse cheiro em você, você nunca me enganou, nunca vai me enganar. chega!!

    e chegou mesmo. chegou pra mim. mal consegui deixar minha pasta sobre a mesa de centro da sala, peguei as chaves do carro e sai sem nem pensar no que estava fazendo. quando me dei por mim, já estava na estrada de novo. na estrada. de novo. e o cansaço me impedia de pensar porque tudo que queria era tomar um banho, comer algo, ligar a tv. dormir. cada detalhe do meu inferno pessoal, cada motivo sem fundamento da minha culpa voluntária, tudo isso ia acumulando em pensamentos torturantes, sem sentidos. sem solução aparente. eu a abandonaria. ahh, estava certo disso, eu a deixaria! só assim resolveria essa via crucis auto-imposta. mas não, não poderia: conhecendo-a até o ponto que cheguei, sabia que não seria tão facil: ela não era do tipo que sabe perder. ela alegaria algo, agressão, qualquer coisa que conseguisse convencer uma tribuna sobre seu marido ausente, violento e viciado em algo que eu nunca havia experimentado. isso não teria um fim que apaziguasse minha alma perturbada.

    decidi que acabaria com aquilo de uma vez por todas, não importava como seria. não importava quem acertaria para que minha missão tivesse sucesso: na verdade mal pensei nisso, na consequencia que meu ato teria para terceiros, já que o ódio dominava completamente meu corpo e espirito. fechei os olhos, girei de uma vez o volante do maverick para a esquerda. ele planou por segundos na encosta da estrada. o desnível da ladeira entre as duas pistas me guiou diretamente na direção da janela de um Interestadual que cruzava a estrada no sentido contrario. infeliz coincidencia, justamente no mesmo minuto que decidi meu fim.

    atravessei a janela, cravando o carro no interior do onibus, fundindo os dois corpos metalicos em fumaça e gasolina. não sei exatamente como, quem sabe uma última e fatal alucinação, mas por um momento me vi sentado no banco ao lado onde o carro pousou. e eu me olhava ali, na minha frente, apavorado, como num pesadelo caótico espelhado e coberto de sangue. dizem que é a confusão criada um segundo antes de morrer: um deja-vu na forma de um espelho tri-dimensional, irreconhecivel a si proprio, mas inegável ao aceitar seu destino.