sobre Ballard

  • segunda-feira, 20 de abril de 2009
  • Wash.

  • Crash, de J. G. Ballard, não é um livro escrito por um pervertido sexual. Ballard desdobra o não-mocismo americano por meio de um grupo de pessoas aficcionadas em ossos quebrados, sangue, esperma e ferro retorcido, uma sociedade mutilada pela produção massificada e pelo caos do trafego descontrolado, sempre querendo atingir o climax da tecnologia numa ideia de sociedade robotizada sexualmente desumanizada.

    exatos dez dias que eu postei isso no meu fotolog e o Ballard bateu as botas. cancer de prostata. o que prova que a mente de Ballard não era tão pervertida assim, a ponto de escrever os absurdos de Crash mas não querer levar uma dedada básica pra diagnosticar o maleficio...
  • domingo, 19 de abril de 2009
  • Wash.
  • esses dias atrás eu achei um conto da Clarisse Lispector que li ha alguns anos e que fazia tempo que não lia, e que me encantou de novo da mesma forma que me encantou da primeira vez que o li. Enfim, queria arrumar uma boa desculpa pra posta-lo aqui pra que as pessoas que fuçam aqui também pudesse le-lo, e queria dizer que é sobre a inveja, sobre egoismo, sobre uma certa maldadezinha infantil ou sobre vingança... mas pra que? nem tou interessado em passar nada disso pra ninguem, nem me sinto prejudicado por ninguem; a verdade é que o conto é bom, o jeito que ela escreve é muito convincente e detalhista e inspirador (a analise do texto poderia ser muito mais eloquente do que "convincente, detalhista e inspirador"... mas é melhor tirar suas proprias conclusões) e eu queria posta-lo aqui e pronto, só isso, fim de papo. taí o conto da Clarisse Lispector:



    Felicidade Clandestina
    Clarice Lispector

    (O Primeiro Beijo
    São Paulo, Ed. Ática, 1996)


    Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

    Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

    Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

    Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

    Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

    Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

    No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

    Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

    E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

    Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

    Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

    E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

    Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

    Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

    Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

    Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

    sobre o amigo iraniano

  • terça-feira, 7 de abril de 2009
  • Wash.
  • fui ver essa animação franco-hebraica chamada Valsa com Bashir, que trata a guerra do Libano de modo não subjetivo, mas talvez em segundo plano. falar a verdade não chega a ser em segundo plano, a guerra em si é de fato o plano principal do filme, claro, mas os personagens acabam chegando ao assunto de uma forma indireta, por meio de sonhos, bloqueios mentais e fatos de importancia pessoal ocorridos no periodo, mas que acabam se afunilando e dichavando um assunto em comum: a insanidade e o horror da guerra. o final em particular é um choque visual, quando a animação (teoricamente um mundo de fantasia) se torna imagem real de documentario, do mundo real e cruel. enfim, é fodástico. recomendo fudidamente.

    anyway, enquanto assistia o filme me lembrei do Ali. grande Ali. logo que cheguei ao Japão, em 1998, fui mandado pra um trampo numa cidade portuaria na provincia de Ibaraki. eu não sabia nada ainda sobre aquele país e não sabia falar japones e não sabia porra nenhuma, um porra de um cabaço perdido no meio de um lugar estranho sem saber de nada. me enfiaram num galpão que processava alimentos, mais especificamente de King Crabs, caranguejos gigantescos que chegavam embalados do Alaska e do Estreito de Behring, prontos para serem processados e comercializados por preços exorbitantes para o consumo diario dos japas. o detalhe era que não tinha NENHUM brasileiro na fabriqueta, só trabalhadores asiáticos, tailandeses, indonesios, filipinos, malaios. a maioria deles clandestinos. meu primeiro pensamento foi "me fodi lindo". mas no segundo dia apareceu um cara branco assim como eu, estatura mediana, com feiçoes caucasianas. "ué! tem brasileiro aqui nessa porra e ninguem me disse nada, cacete!!" foi o que eu pensei, e já fui seco rolando ideia com o cara em portugues, e o cara com uma puta cara de merda olhando pra mim sem entender nada: "where you're came from, man?" e nada de resposta. o cara me responde em japones. !!!. "que diabo... da onde esse cara veio? ele não é japa!" eu perguntei em ingles pros indonesios que eram um pouquinho mais espertos. "ele é iraniano" me respondeu o indonesio. iraniano. sem brincadeira, o cara lembrava um pouco o Mel Gibson! afora o topete, que só depois soube ser esse o corte de cabelo tipico dos jovens e homens iranianos, mas ele parecia o Mel Gibson. uma vez falei isso pra ele e ele ficou todo orgulhoso, me agradecendo. me disse que na verdade ele era diferente até entre os iranianos, que são mais morenos e de sobrancelhas grossas, porque seus pais eram do Uzbequistão, praticamente na Russia. outro fato que indicava ser de origem arabe eram suas calças jeans "baggy"; parece que o embargo americano fez com que os iranianos estacionassem nos anos 80, assim como os carros sexagenarios que circulam por Cuba até hoje. enfim, o cara era iraniano.

    pior que pelo fato de sermos parecidos de alguma forma, a barreira da lingua não impediu que nos tornassemos bons amigos. ele me explicava pela "linguagem universal dos sinais" (...!) sobre o trabalho, a lingua e o modo de vida japones, e tambem o quanto ele odiava estar sozinho naquele lugar onde todo mundo tinha olho rasgado e a polidez sistemática japonesa. achava que só por eu ser fisicamente parecido com ele tinhamos algo em comum, e apesar de eu ser cristão (ou na teoria eu seria) ele poderia confiar em mim. mas com o tempo fui vendo como ele era diferente de mim, culturalmente falando: era um cara esperto, mas era muito machista e homofóbico; achava besteira o meu vegetarianismo mas não comia carne de porco porque Allah lançou no porco animal toda a impureza da humanidade; odiava tudo que lembrava America: "amerikan butá", ele se referia. porco americano, traduzido do japones. de certa forma não podia deixar de concordar, afinal a America fudeu com o país dele. era muito religioso: perdia 20 minutos do horario do almoço pra estender um pano no chão em direção Mecca, e rezar. acho que a segunda entre as 5 vezes ao dia que parava pra fazer isso. mas não usava o turbante islamico nem barba: "fundamentalistas eram uns imbecis", ele dizia. ele não entendia como eu conseguia sobreviver sem religião, que era a roda que movia a vida dele. eu respeitava muito a sua fé, e demonstrando meu interesse ele chegou a me mostrar alguns aspectos bonitos do Islamismo, coisa que aliás toda a religião tem, afora o fanatismo patológico. toda a religião tem a sua beleza, seu lirismo e encantamento. o que fode a religião são seus seguidores, enfim... vai entender! mas enfim, ao ver que não conseguiria me converter, só ficou nas explicações basicas mesmo. nem foi chato, foi instrutivo.

    certa vez falando de guerras (Coreia do Norte havia lançado um missil em direção ao Japão e a porra do missil caiu no mar, os bichos nem sabem fazer uma merda de missil descente) e o Ali me contou que ele tinha servido ao Irã na guerra contra os vizinhos do Iraque. disse que ele era floricultor e foi convocado pro front. mas não entrou em detalhes: disse que não gostava de lembrar das coisas que ele viu na guerra, que era muita desgraça pra lembrança de uma vida só. disse também que os iraquianos de Saddam eram muito cruéis, muito mesmo, inclusive com mulheres e crianças. e só isso. nunca mais nem disse nada. eu ficava curioso em perguntar, mas ele não gostou de lembrar e eu nem toquei mais no assunto, enfim.

    depois de seis meses em sua companhia, acabei tretando com o japa chefe e vazei pra outro canto do Japão. nunca mais vi o Ali, acho que nem me despedi dele. mandei alguns cartões postais, mas ele nem respondeu, talvez nem tenha os recebido. depois ainda passei mais dois anos e meio em terras niponicas, conheci peruanos, chineses, mais filipinos, e muitos, muitos brasileiros, pessoas otimas com estorias de vida interessantissimas. mas sempre lembro do Ali porque foi um cara diferente, com uma aura diferente, um cara complascente apesar de ter sido soldado na guerra do Irã-Iraque e ter visto coisas horriveis, desastres da guerra que modificam a personalidade das pessoas. e apesar de uma vidinha de merda que vivemos aqui, nem sabemos o que é viver na merda de verdade. todos os creditos ao jeito gente fina e "deixa disso, para com isso" brasileiro, sempre dando seus pulos: malandro sempre, mas treteiro jamais. assim que é.

    apesar que existe o trafico, existe a policia e existe a pobreza. é uma guerra, não deixa de ser uma guerra. mas isso é outra estoria: não dá pra comparar treta de vizinho com bagunça dentro da propria casa...